A tecnologia nos encanta. Mais que isso: nos fascina.
Porém, nosso deslumbramento facilmente se transforma em insuspeitada escravidão. Escravidão não apenas pela dependência – imaginem o que seria das grandes empresas, dos bancos, dos supermercados e tantos outros estabelecimentos, sem a informática. Basta que caia o sistema de um deles para experimentarmos uma sensação de abandono, de impotência, de desespero...
Ao adentramos um restaurante, não há conversa, pois todos estão presos aos seus celulares...
Esse isolamento das pessoas tende a contaminar as Instituições.
Com efeito, o advento da pandemia pelo COVID levou-nos a trabalhar em casa e, num primeiro momento, se transformou em um novo sistema de vida, mais confortável, quiçá até mesmo mais produtivo, à primeira vista.
Mas, provocou uma imensa falta de interação entre as pessoas.
Em qualquer setor de atividade humana, o convívio entre os que se dedicam ao mesmo mister produzia efeitos benéficos, que somente agora alguns de nós começa a perceber com grande clareza.
A troca de ideias, olhando nos olhos do colega ou do companheiro de trabalho, foi, sem qualquer sombra de dúvidas, uma perda que pode se tornar irreparável.
No âmbito da Justiça, esse isolamento está sendo devastador.
Julgamentos virtuais e audiências virtuais amorteceram a sensibilidade do julgador e diminuiu o impacto de uma defesa oral. Um interrogatório, a tomada de um depoimento testemunhal e de declarações das partes,
feitos pela “telinha” nos transformaram em máquinas de postular e em máquinas de julgar.
O velho e clássico princípio da identidade física do juiz foi uma conquista do sistema contraditório e uma garantia da ampla defesa.
Por esse caminho, não é difícil prognosticar que, um dia, tudo será resumido a um simples QR _code_, um mero cartão de barras, que poderá ser lido e interpretado por um computador-julgador, a dispensar aquilo
que mais conta num julgamento – o raciocínio intuitivo do juiz, que colheu pessoalmente todas as impressões que foram desveladas pelos atos processuais presenciais.
Pode ser que alguém rebata essas ideias, argumentando que a IA resolverá tudo...
Porém, trago uma experiência que talvez destrua o argumento: quando a gente se forma em Direito, estranhamos a existência do Tribunal do Júri, no qual pessoas leigas condenam ou absolvem o réu, acusados de
homicídio doloso – pessoas sem preparo jurídico! Também já pensei assim, até que um dia, como Promotor de Justiça, participei de um julgamento no qual a fria aplicação das regras jurídicas levaria inexoravelmente à condenação do acusado. Mas, eu mesmo não estava convencido da justiça de uma condenação naquele acontecimento, pois naquela situação concreta talvez eu mesmo teria agido como o réu... Graças a Deus (e aos jurados) o réu foi absolvido por unanimidade – e eu respirei, aliviado! E entendi que esses casos precisam mesmo de uma válvula de escape, pois dentre todos os crimes do Código Penal, por mais honestos que sejamos, não estamos livres de cometer um homicídio.
E quem deve julgar, com a sensibilidade própria do cidadão, são pessoas da comunidade e não um Juiz de Direito.
Não creio que uma máquina possa possuir essa sensibilidade e essa intuição.
No caso do Ministério Público, o isolamento dos Promotores de Justiça destrói o princípio que informa a constituição das Promotorias de Justiça, que exige profunda interação entre eles, a fim de que possam elaborar políticas públicas de combate aos eventos que geram os processos, sendo que estes são meros sintomas de uma deformidade que há na sociedade.
Como defender proficuamente as violações à cidadania dos que não gozam dos mínimos direitos à uma vida digna e participativa? Dos mais de setenta milhões de cidadãos brasileiros, que não têm água
encanada e esgoto sanitário em suas casas?
Não é essa, em última análise o papel Institucional do Ministério Público?