Por Paulo Henrique T. Capelotto e Izabela Di Rito.
Tramita junto ao Superior Tribunal de Justiça o Tema Repetitivo n. 1.096, o qual tem como questão submetida a julgamento pela 1ª Seção o assunto: “Definir se a conduta de frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente configura ato de improbidade que causa dano presumido ao erário (in re ipsa)”.
Como se sabe, o julgamento de ações repetitivas no âmbito do Superior Tribunal de Justiça compõe o sistema de precedentes, cuja finalidade é, indiscutivelmente, permitir a uniformização da jurisprudência e dar maior celeridade aos julgamentos pelas instâncias ordinárias.
O tema em questão foi afetado em junho de 2021 e, até o presente momento, não houve a definição de como o Superior Tribunal de Justiça irá se posicionar, embora haja a determinação de “(...) suspensão aos recursos especiais e agravos em recursos especiais interpostos nos tribunais de segunda instância ou em tramitação no STJ, devendo-se adotar, no último caso, a providência prescrita no art. 256-L do RISTJ” (acórdão publicado referente ao REsp 1912668/GO, em 08/06/2021).
O que nos importa, basicamente, é saber – e contribuir para o julgamento do aludido tema – se seria possível o reconhecimento de dano presumido para a configuração da conduta de frustrar a licitude do processo licitatório.
É bem verdade que a inquietação sobre a presunção é anterior ao advento da inovação legislativa decorrente da Lei n. 14.230/2021, que foi promulgada em 25 de outubro de 2021, em relação à Lei de Improbidade Administrativa (LIA – Lei nº 8.429/92). Mas, nessa altura, inclusive após o julgamento do Tema de Repercussão Geral nº 1.199, pelo Supremo Tribunal Federal, afeiçoa que a questão foi decidida.
Da análise da petição inicial do REsp 1912668/GO, verifica-se que o Ministério Público, autor da ação de improbidade administrativa, imputou aos implicados no processo os atos previstos no inciso VIII do art. 10 e no caput do art. 11:
Redação vigente à época do ajuizamento da inicial em 24/07/2008:
Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:
VIII - frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente;
Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:
Redação após a Lei nº 14.230/2021:
Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão dolosa, que enseje, efetiva e comprovadamente, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente:
VIII - frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente, acarretando perda patrimonial efetiva;
Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas:
Como se vê, portanto, dois são os pontos dignos de nota.
O primeiro, diz respeito ao fato de que o caput do art. 11 não mais configura ato de improbidade, sendo necessária a demonstração de um dos tipos previstos nos respectivos incisos, fazendo a expressão “caracteriza por uma das seguintes condutas” premissa para tal compreensão.
Já o segundo diz respeito à circunstância de que o legislador reformador deixou claro e evidente que todos os tipos que importem danos ao erário deverão ser acompanhados da inequívoca demonstração da existência não apenas do dolo, mas, em especial, do efetivo dano. Nesse sentido, a nova redação do art. 10, da Lei de Improbidade Administrativa, passou a prescrever:
Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão dolosa, que enseje, efetiva e comprovadamente, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente:
Ademais, o próprio inciso VIII do art. 10 também passou a exigir a perda patrimonial efetiva:
VIII - frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente, acarretando perda patrimonial efetiva;
Mas, restaria a indagação sobre a temporalidade das alterações e o impacto para definição em situações análogas anteriormente ao advento da novel legislação.
Nesse sentido, socorremo-nos ao que o Supremo Tribunal Federal veio a decidir por ocasião do julgamento do já referido Tema de Repercussão Geral nº 1.199. Com efeito, definiu-se que “A nova lei 14.230/21 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior”.
Embora a redação seja evidente para definir que se trata dos casos culposos, a indicação do Pretório Excelso é elucidativa e deve ser aplicada sem qualquer restrição às hipóteses em andamento.
Ainda antes do julgamento do Tema de Repercussão nº 1.1999, PAULO HENRIQUE TRIANDAFELIDES CAPELOTTO e ROBERTO RICOMINI PICCELLI tiveram a oportunidade de escrutinar o assunto da temporalidade da lei, ao concluir que “(...) o que prevalece não é a lei infraconstitucional, mas o próprio comando da Constituição Federal, de determinar a aplicação da norma sancionatória mais benéfica, na forma do art. 5º, XL”[1].
Em que pese o entendimento desses autores (respeitoso, é evidente) quanto à não limitação temporal das alterações legislativas, minimamente aos casos em andamento deverá ser aplicada a inovação mais benéfica em favor dos implicados, tendo por inequívoca a impossibilidade de presunção de danos quando da existência de suposta fraude ou dispensa ilícita de certames licitatórios.
E isso se deve não apenas na perspectiva da inovação legislativa, mas pelos seguintes (e relevantes) fundamentos:
O primeiro deles é de que a fraude à licitação (em sentido amplo, englobando tanto a existência de um certame maculado ou a dispensa irregular) diz respeito à escolha viciada de um contratado – e não está relacionada à execução contratual.
A segunda, diz respeito à circunstância de que a escolha viciada do contratado, para configurar o tipo do art. 10, VIII, da LIA, deve gerar um dano efetivo e, portanto, relaciona-se à impessoalidade da escolha, que, para ser tratada sem a discussão do dano, deve ser evidentemente avaliada sob o prisma do art. 11.
Ou seja, para a configuração do tipo previsto no art. 10, necessária será, em qualquer das hipóteses, a comprovação efetiva do dano.
Em conclusão, temos o seguinte:
1- Não há como referir a presunção de dano como pressuposto para a configuração do art. 10, da LIA, sendo necessária a existência de efetiva perda patrimonial.
2- O Tema de Repetitivo nº 1.096 deve ter uma interpretação que coincida com a inovação legislativa, no sentido de apenas admitir a configuração do art. 10, VIII, da LIA, na hipótese de efetiva demonstração de dano ao erário;
3- A aplicação da inovação legislativa dar-se-á, nos termos do entendimento do Supremo Tribunal Federal, relativamente às ações em andamento – embora seja defensável que todas as ações, inclusive as transitadas em julgado, também sejam alcançadas –, respeitando-se o ato jurídico perfeito.
[1] CAPELOTO, Paulo Henrique Triandafelides, e PICCELLI, Roberto Ricomini. A exclusão da culpa nos casos de dano ao erário e as consequências da lei no tempo, in Lei de Improbidade Administrativa Reformada: Leis 8.429/92 e 14.230/21, Coordenadores Augusto Neves Dal Pozzo e José Roberto Pimenta Olivera, São Paulo: RT, 2021, p. 374.