O traço seguinte das infraestruturas é a chamada multilateralidade, para cujo exame impõe-se uma observação preliminar. A unilateralidade, bilateralidade ou multilateralidade podem dizer respeito à formação da norma jurídica – introdução de uma norma jurídica no sistema por apenas um sujeito de direito, com a concorrência da declaração de mais de um sujeito de direito ou de vários para veiculação de uma norma jurídica – ou ao conteúdo da norma jurídica – em que a unilateralidade significa a criação de posições jurídicas ativas e passivas para apenas um sujeito de direito, enquanto a bilateralidade representa a constituição de posições jurídicas ativas e passivas para dois sujeitos de direito e a multilateralidade para diversos sujeitos de direito.[1]
A multilateralidade presente nas infraestruturas atina ao conteúdo das normas jurídicas, ou seja, delas emergem, direta ou indiretamente, posições jurídicas ativas e passivas para uma generalidade de sujeitos. Alguns autores têm considerado a multilateralidade uma marca da Administração contemporânea, a isso denominando “Administração multipolar”. Assinala, a esse respeito, Eurico Bitencourt Neto:
No primeiro caso, tem-se o fenômeno da multipolaridade quando a Administração atua de modo genérico, no campo da chamada atividade reguladora ou infraestrutural, na medida em que as decisões administrativas atingem um número muitas vezes indeterminado de pessoas. Para além disso, boa parte das decisões da Administração infraestrutural, embora dirigidas a um destinatário ou a alguns destinatários determinados, no âmbito de uma relação bilateral, tem seus efeitos, direta ou indiretamente, estendidos a uma multiplicidade de destinatários. Avultam-se, nesses casos, as chamadas relações jurídicas administrativas multipolares ou poligonais, que se revelam aptas para regular situações complexas, com a presença de múltiplos interesses concorrentes e uma interpenetração de interesses públicos e privados.[2]
O quadro é contrastante com o momento anterior. Durante o caminhar do século XX, houve, inequivocamente, um agigantamento da participação da Administração Pública nos mais diversos tipos de relacionamentos sociais. No âmbito econômico, essa presença da Administração foi bastante intensa, em especial, no desempenho de atividades econômicas propriamente ditas e na prestação de serviços públicos. Ainda que de maneira não deliberada, a ampla presença da Administração tornava os relacionamentos menos complexos.
Não havia, de modo geral, interesses diversos contrapostos a serem arbitrados pelo Poder Público. Um exemplo, talvez, seja interessante para melhor visualização do quadro: entre os anos de 1930 e 1980, no Brasil, houve massiva intervenção do Estado no domínio econômico. Não se via, com facilidade, em setores econômicos importantes, a participação de agentes privados. A concessão de serviço público, nesse período, enquanto clássico instrumento de emparceiramento entre o Poder Público e os particulares, não foi frequentemente utilizada. O instituto renasce, por assim dizer, no Direito brasileiro, a partir dos anos 1990, com a edição da lei geral de concessões e de outros diplomas que de alguma forma tratam da matéria (telefonia, petróleo e gás etc.).
Em diversos setores econômicos, por exemplo, o que se assistiu foi a utilização da chamada “concessão imprópria”[3], mecanismo pelo qual o poder concedente delegava uma atividade a pessoa do aparelho estatal (da mesma unidade federal ou não). Os financiadores dos projetos eram, em regra, bancos públicos.
Ou seja, basicamente, tudo estava concentrado nas mãos do Estado, que resolvia eventuais conflitos dentro de suas próprias estruturas. Essa situação acabou por beneficiar uma visão a partir do Estado que, nem sempre, prestigiou interesses de outros atores envolvidos em relações administrativas.
Hodiernamente, com a retomada da concessão propriamente dita, a emparceirar o Poder Público e particulares, os interesses (legítimos) a serem arbitrados, a despeito de convergirem no alcance do fim, são diversos no meio: os interesses dos concessionários, dos usuários, dos financiadores dos projetos, dentre outros. A título exemplificativo, interessa observar, ainda, que dos grandes projetos de infraestrutura defluem, como regra, graves impactos para as comunidades locais, fazendo emergir um sem-número de posições jurídicas. Estabelece-se, pois, um diálogo entre os direitos humanos e as infraestruturas, que é observado por Michael Likosky:
Estratégias de mitigação em relação aos direitos humanos são, então, adotadas pelos projetistas. Eles são também atores estratégicos. Suas estratégias de mitigação são, geralmente, táticas defensivas, e abordam os direitos humanos em função de ONGs e grupos organizados da sociedade civil. Por exemplo, se uma ONG logra êxito em montar um acampamento para denunciar que um projeto não incluiu comunidades indígenas no processo de tomada da decisão, os projetistas podem responder por meio da inclusão de tais comunidades.[4]
O traço da multilateralidade, conforme veremos, atrairá a incidência de certos princípios jurídicos, moldando a atividade de provisão de infraestrutura. Ante as mudanças transformadoras do Estado (pós-social), perdem terreno as relações impostas pela Administração ou meramente bilaterais. As relações se encontram muito mais complexas e multifacetadas, a exigir da Administração a compreensão de um novo momento. Nisso, está o princípio da multilateralidade.
A multilateralidade, no contexto ora abordado, significa a capacidade de a Administração, no exercício da atividade de infraestrutura, compreender que as ações por ela executadas não se limitam a posições jurídicas unilaterais ou bilaterais, elas extrapolam esse campo para atender a uma multiplicidade de posições. Muitas vezes, não é possível sequer antecipar, racionalmente, todas as posições jurídicas que poderão ser evidenciadas pela atividade de infraestrutura; não raro, elas acabam sendo conhecidas a posteriori em sua concretude. O que é inexorável é que as ações de infraestrutura gozam desse caráter de amplo alcance (generalidade), e com isso geram uma multiplicidade de posições jurídicas no seio da coletividade que devem ser consideradas pelo administrador público.
A consequência jurídica do reconhecimento do princípio da multilateralidade é o dever do administrador público de promover, por exemplo, audiência e consulta públicas para ouvir previamente a sociedade e os setores envolvidos e, com isso avaliar, no caso concreto, a melhor decisão administrativa a ser tomada no tocante ao exercício da atividade de infraestrutura. É o que se espera, hodiernamente, com a chamada administração participativa, em que todos aqueles que podem ser afetados (e aqui estamos falando de uma gama enorme de atores, conhecidos e desconhecidos) possam se manifestar previamente acerca das questões que os envolvem e, com isso, conquistar maior transparência no manejo da atividade de infraestrutura. A falta da realização de tais procedimentos pode fulminar de invalidade os atos administrativos posteriores, algo nefasto, especialmente, se a decisão optar pela concessão de infraestrutura, num ambiente de defraudação da segurança jurídica.
A multilateralidade impõe transparência no exercício da atividade de infraestrutura, especialmente, quando se está diante da preparação e condução de um processo concessório. Ela impõe, à Administração Pública, o acesso universal (e, de preferência, digital) aos processos administrativos que a envolvam, inclusive no tocante a consultas e audiências públicas; a realização das chamadas rodadas de “Market Sounding” (para testar a habilidade do mercado em assumir riscos e a atratividade do projeto como geração de negócio); o aperfeiçoamento do processo de financiamento do projeto por meio de “Roadshows” (visando à atenção de potencial investidores nacionais e estrangeiros); enfim, uma série de iniciativas do Poder Público para escrutinar o projeto que está sendo levado a efeito, para que, não apenas os interessados na contratação efetiva, mas também a sociedade como um todo possa ter acesso às informações preventivamente, haja vista o enorme impacto em variadas posições jurídicas que a decisão da atividade de infraestrutura causará na coletividade.
Procurando diferenciar a Administração de infraestruturas da Administração prestadora, Heiko Faber indica que os atos expedidos no âmbito da atividade de infraestrutura não têm relação com “medidas, ou mesmo decisões vinculativas, em situações concretas relativamente a pessoas determinadas, antes criam as condições gerais (premissas) para tais medidas”.[5] A compreensão de multilateralidade identifica-se, portanto, com o que consignamos anteriormente: a atividade de infraestrutura é, em regra, não pontual, como nas prestações de serviço público.
[1] VALIM, Rafael. A subvenção no direito administrativo brasileiro. São Paulo: Editora Contracorrente, 2016, p. 129.
[2] BITENCOURT NETO, Eurico. “Transformações do Estado e a Administração Pública no século XXI”. Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 4, n. 1, jan./abr. 2017, pp. 214-215.
[3] Cf., por todos, SOUZA, Rodrigo Pagani de. A experiência brasileira nas concessões de saneamento básico. In: SUNDFELD, Carlos Ari (Coord.). Parcerias público privadas. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, pp. 355-356; TRINDADE, Karla Bertocco. “A Construção de um Novo Modelo Institucional para o Saneamento no Estado de São Paulo”. In: MOTA, Carolina Mota (Coord.). Saneamento básico no Brasil: aspectos jurídicos da Lei Federal n. 11.445/07. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 291.
[4] “Human rights mitigation strategies are in turn employed by this group of project planners in the context of infrastructure projects. Planners are also strategic actors. Their mitigation strategies are often defensive tactics, responding to human rights by NGOs and community groups. For example, if an NGO successfully mounts a camping claiming that a project does not include indigenous communities in its decision making, project planners might respond by including members of these communities” (LIKOSKY, Michael B. Law, infrastructure and human rights. Nova Iorque: Cambridge, pp. 47-48, tradução nossa.
[5] FABER, Heiko. Verwaltungsrecht. 3. ed. Tuebingen: Mohr Siebrek Ek, 1992 , p. 163 apud SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da. Em busca do acto administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 2003., p. 140.