Outro princípio jurídico que orienta a atividade de provisão de infraestrutura e que guarda íntima relação com o princípio da intergeracionalidade é o da prospectividade.

Na linguagem corrente, a definição do termo “prospectivo” está atrelada à ideia de um sujeito que busca enxergar o futuro na tomada de decisões presentes. Associa-se, assim, prospectividade à projeção segura de medidas que devem ser tomadas para atender a demandas que, no longo prazo, continuarão a existir. Há, nesse sentido, uma preocupação para além das demandas atuais.

No verbo de Hinnerk Wißmann, “o direito das infraestruturas públicas poderá contribuir, de sua maneira, para a transformação do futuro por meio do direito público”.[1] Dirk Van Laak, por sua vez, afirma que as infraestruturas “são consideradas, per definitionem, elementos de orientação para o futuro”.[2] Estas manifestações teóricas apontam para o fato de que a atividade de provisão de infraestrutura sempre tem um olhar no futuro, uma vocação irresistível de transformação ou conformação da realidade social.

Reiterou-se, ao longo do presente trabalho, que a infraestrutura é condição indispensável ao desenvolvimento social e econômico de um país. Mais que isso: infraestrutura é um pressuposto do Estado moderno. Historicamente, países possuem melhores indicadores socioeconômicos conforme melhor exerçam a atividade de infraestrutura por eles desenvolvidas.[3]

Com efeito, postulamos ser inerente à concepção de infraestrutura (econômica e jurídica) a premissa de que ela é voltada à solução de questões de longo prazo, e não apenas as imediatas. A instalação de infraestruturas está intimamente conectada às projeções futuras de demanda da sociedade. São o suporte necessário para o empreendimento de atividades relevantes ao longo do tempo, permitindo-se a manutenção de condições de competitividade dos países em busca de melhorar as perspectivas socioeconômicas de suas populações.

Enquanto outras atividades administrativas visam à conservação do estado de coisas atual, adotando, pois, uma postura retrospectiva, de que é exemplo eloquente a atividade administrativa sancionatória, as infraestruturas sempre implicarão uma visão orientada ao futuro, uma previsão de custos, benefícios e riscos a determinar uma intervenção atual na realidade.[4] Paulo Otero, ao abordar a Administração de infraestruturas, também encarece a prospectividade como um dos traços da infraestrutura. Eis suas palavras:


A Administração de infraestruturas, visando conjugar o fornecimento de serviços básicos e o propósito de alterar a realidade social para além de cada caso concreto, desenvolve uma atuação conformadora ou transformadora, numa visão renovada do bem-estar, segundo uma postura prospectiva e de composição ponderativa de interesses públicos e privados (…).[5]


O raciocínio é o mesmo para considerar a prospectividade como princípio da atividade administrativa de infraestrutura. Tal atividade exige, da Administração Pública, o desempenho de uma tarefa complexa, qual seja, a de se organizar no presente para gestar um futuro mais seguro da coletividade.

Não se trata, enfim, de atividade meramente prestadora de utilidades a indivíduos determinados em um contexto atual. A atividade de infraestrutura não é destinada apenas a sujeitos não identificados de modo imediato, mas, também, àqueles que virão a integrar um determinado conjunto social. Nisso, está a generalidade da atividade de infraestrutura. Conforme pondera Vasco Pereira da Silva:


Assiste-se, assim, à proliferação de actuações administrativas de caráter geral, ou de medidas individuais de alcance não limitado aos imediatos destinatários, ou ainda ao surgimento de formas de actuação de carácter misto, que combinam aspectos genéricos com individuais, e que só muito dificilmente se enquadram nos esquemas tradicionais.[6]

 

Nesse sentido, também, é que Heiko Faber dirá que, ante um quadro de aumento das complexidades nas relações envolvendo o Poder Público, a atividade de infraestrutura não pode ser enquadrada como parte da Administração agressiva, nem na de Administração prestadora.[7]

Marcada pela prospectividade, a atividade de infraestrutura reúne todas essas características: ela é gestora, prestadora e reguladora. Ou, como resume Rivero, a Administração assume uma função “conformadora”[8], uma vez que ela “não se limita a gerir o presente: a ela compete preparar o futuro. Esta atitude prospectiva exige instrumentos novos – planos de desenvolvimento, de urbanismo, diretivas, etc. – e põe em questão um grande número de soluções adquiridas”.[9]

A atividade administrativa de infraestrutura é, por essência, prospectiva. A administração de infraestruturas visa ao futuro; jamais ao passado e nunca exclusivamente o presente. A necessidade atual de infraestruturas serve para proporcionar um futuro melhor. Trata-se de atividade que é desempenhada tendo em vista a durabilidade e a estabilidade das relações sociais.

Nesse sentido, os contratos relacionados à infraestrutura, quando essa atividade é delegada aos particulares – referenciados acima – devem ser projetados para se estenderem por um longo prazo, não somente para a recuperação dos vultosos investimentos iniciais aportados por um parceiro, mas porque eles causarão ampla repercussão sobre os que, durante esse período, vierem a utilizar tais infraestruturas. Nisso está o olhar para o futuro da atividade administrativa de infraestrutura. As ações presentes também devem estar atentas ao futuro.

Aqui, pode-se notar uma consequência jurídica altamente relevante que decorre do princípio da prospectividade. Se o Estado convida, por meio da instauração de um processo de licitação, a participação da iniciativa privada para, em convergência com ele, prestar uma atividade de infraestrutura por longo prazo, é porque, certamente, ele não dispõe dos recursos suficientes para promover os investimentos necessários, de forma a socorrer-se dos investidores privados. Essa decisão administrativa, haja vista seu caráter prospectivo, vincula o Poder Público a manter o contrato em andamento até que o setor privado tenha amortizado o capital investido.

Isso porque o ente privado tem o direito subjetivo de amortizar os investimentos realizados, especialmente, se o Poder Público não detiver condição financeira de indenizá-lo. Dessa forma, qualquer processo de retomada da concessão pelo Poder Público obriga a se indenizar, previamente, o concessionário pelos investimentos realizados e, mesmo nos casos de culpa grave do contratado, a incidência da caducidade também resulta no dever de indenizar investimentos.[10] Em compasso com o princípio da boa-fé, seria absolutamente defraudador da segurança jurídica permitir o encerramento do contrato e submeter o concessionário ao regime de precatórios para receber a amortização dos investimentos aportados.

Mas o princípio da prospectividade opera, também, em face do concessionário, que estabelece uma longa aliança com o poder concedente para, juntos e convergentemente, executarem a atividade de infraestrutura da maneira benéfica à coletividade. É passível de invalidação a conduta intempestiva do Poder Público que rompa tal vínculo duradouro sem que todos os investimentos realizados pelo setor privado se encontrem amortizados, haja vista o direito público subjetivo que nasce dessa relação, advindo e protegido pela prospectividade.

Assinala-se, ainda, que dele decorre a indispensabilidade do planejamento na atividade de infraestrutura. Como nos ensina Eros Grau, “a natureza prospectiva do planejamento, assim, quando as definições através dele consumadas assumem forma normativa, implica uma ruptura da técnica ortodoxa da elaboração do Direito, tradicionalmente retrospectiva”.[11] O princípio da prospectividade impõe, ao administrador público, a obrigação de antecipar escolhas, de forma a diminuir o grau de discricionariedade reservado às decisões administrativas vindouras, que ficarão adstritas àquela.

Essa característica é fundamental porque ela retira a evidência política de algumas decisões administrativas correlacionadas à atividade de infraestrutura, levando-as ao campo eminentemente técnico, de forma a garantir, especialmente quando a atividade é delegada, a continuidade dos projetos. Em decorrência disso, concretizam-se valores nucleares do sistema jurídico como segurança jurídica, confiança legítima, boa-fé e estabilidade das relações jurídicas.

O regime jurídico que disciplina a atividade de infraestrutura prescreve obediência inequívoca ao princípio da prospectividade pelo administrador público, de sorte que as alterações posteriores de suas decisões decorrem muito mais de uma invalidação do ato jurídico praticado do que por uma mera revogação do ato, evitando a invocação de razões insuficientes (e até muitas vezes fabricadas) de proteção ao interesse público. O ônus argumentativo para a revogação, considerando o princípio da prospectividade, deve ser muito robusto, enérgico, o que enseja, sem dúvida alguma, efeito jurídico importante concernente à diminuição substancial do nível de discricionariedade do agente público.

Em síntese, o plano expressa, prospectivamente, antecipações que orientam a ação administrativa, de modo que infraestrutura e planejamento sempre constituirão categorias indissociáveis.






[1]    WIßMANN, Hinnerk. “Requisitos de um direito infraestrutural sustentável”.

In: BERCOVICI, Gilberto (Coord.). Direito, infraestrutura e desenvolvimento: o debate alemão. São Paulo: Editora Contracorrente, 2021 (no prelo).

[2]    LAAK, Dirk Van. “História da infraestrutura”. In: BERCOVICI, Gilberto (Coord.). Direito, infraestrutura e desenvolvimento: o debate alemão. São Paulo: Editora Contracorrente, 2021 (no prelo).

[3]    Cf., por todos, CALDERÓN, César; SERVÉN, Luis. “The Effects of Infrastructure Development on Growth and Income Distribution”. World Bank, Policy Research Working Paper, Washington, n. 3400, 2004. Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/14136/WPS3400.pdf?sequence=1&isAllowed=y.

[4]    SFESZ, Lucien. L’Administration prospective. Paris: Librarie Armand Colin, 1970.

[5]    OTERO, Paulo. Manual de Direito Administrativo, vol. I. Coimbra: Almedina, 2013, p. 215.

[6]    Em busca do acto administrativo perdido, op. cit., p. 128.

[7]    FABER, Heiko. Verwaltungsrecht. 3. ed. Tuebingen: Mohr Siebrek Ek, 1992, p. 140.

[8]    RIVERO, Jean. Droit Administratif. 13. ed. Paris: Dalloz, 1990, p. 31.

[9]    RIVERO, Jean. Droit Administratif. 13. ed. Paris: Dalloz, 1990, p. 31.

[10]  Na atual sistemática da Lei Federal nº 8.987/95, a única hipótese em que a indenização não é devida previamente à retomada do serviço é a de caducidade, mas, mesmo nela, conforme dispõe o § 5º do artigo 38, a indenização será devida, mas, nesse caso, mediante a reversão da atividade concedida.

[11]  GRAU, Eros Roberto. Planejamento econômico e regra jurídica. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1978, p. 74.