Embora exista margem intuitiva larga para reconhecer que o planejamento é uma atividade intelectual ínsita a qualquer sociedade minimamente organizada, o que se postula é que, a partir do texto constitucional, há uma prescrição que deve nortear o intérprete da norma e, acima de tudo, o gestor público. O texto constitucional não contém um princípio expresso com tal rótulo, mas o artigo 174 já traz um importante ponto de partida: ele comanda que o Estado deve exercer a função de planejamento, que é determinante para o setor público. Já tivemos a oportunidade de sustentar, mais de uma vez, a importância e, mais que isso, a essência do dever jurídico do planejamento estatal: “tradicionalmente, o substrato material que fundamentava a existência do Estado consistia na legitimação dessa entidade jurídica para uso exclusivo da força e coação, de um lado, e da garantia das liberdades, de outro (…)”.
Porém, com o avanço da civilização, a concepção de Estado foi paulatinamente alargada para que se incumbisse o estado de mais e mais deveres prestacionais destinados a prover comodidades e utilidades aos cidadãos, de modo que o Estado deixou de ser apenas um exercente de poder, para se tornar um prestador de comodidades à sociedade. Enfim, apontamos que “nesse contexto, a atividade de planejamento, mais do que uma faculdade, exsurge como verdadeiro dever jurídico, por força do disposto no § 1º do artigo 174 da Constituição [...]”.[1]
Em outra ocasião, ao tratarmos, especificamente, da prestação dos serviços de saneamento básico, apontamos que o “poder Público está imbuído do dever de não apenas prestar os serviços de saneamento básico, mas também de planejá-los, o que exige, inexoravelmente, o desenvolvimento de ações nesse sentido”.[2] Em função disso, postulamos que:
(…) a atividade de planejamento é um dever do Estado, que, antes de tudo, deve primar por diagnosticar as necessidades daquilo que se ressente o interesse público sob sua tutela e propor metas e programas efetivos de ação aptos a atender e, principalmente, a superar as expectativas e se antecipar, tanto quanto possível, às conjunturas futuras para que não haja solução de continuidade na prestação dos serviços a seu encargo.[3]
Pois bem, o constituinte se valeu do termo “planejamento” e, no § 1º, remeteu à competência legislativa a edição de norma destinada a estabelecer as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado. Essa norma ainda não foi editada, muito embora haja referência a ela na novel Lei Federal 13.874/19, conhecida como a Lei de Liberdade Econômica.
Ocorre que, embora seu artigo 1º faça expressa referência à função do estado como agente normativo e regulador nos termos do parágrafo único do artigo 170 e do caput do artigo 174 da Constituição, a Lei, de modo geral, está focada na atuação do Estado em situações de sujeição geral, ou seja, em que os administrados dependem do Estado para obtenção de providências para o exercício de atividades econômicas. No contexto desta pesquisa, enfoca-se a atividade de infraestrutura como um dever estatal de provimento de certas categorias de comodidades que, embora indivisíveis, são disponibilizadas à sociedade sob regime de sujeição especial. Isso atrai o regime de direito público de modo muito intenso.
Aliás, até mesmo o dever geral de elaboração de análise de impacto regulatório previsto no caput do artigo 5º da nova Lei parece ter pouca ou nenhuma aplicabilidade direta à atividade de infraestrutura, na medida em que está focado, novamente, na atividade econômica, essencialmente distinta da atividade de infraestrutura.
Retomando, o termo adotado pelo Constituinte foi “planejamento”. Trata-se de um princípio na medida em que revela uma viga mestra, um ponto de aglutinação axiomático que desvenda um regime jurídico. Trata-se de uma prescrição nuclear que busca sujeitar a atividade de infraestrutura a um processo racional prévio de organização de informações e de produção de decisões administrativas tendentes a prover uma dada atividade de infraestrutura.
Mas, ainda é possível ir além. Postulamos não apenas o planejamento estatal, mas o princípio do planejamento estratégico. A adição desse termo não é em vão: ela pretende realçar a visão sistêmica de modo a maximizar, não apenas uma determinada atividade de infraestrutura, mas a potencialidade de sua integração em rede com outras atividades.
Ou seja, postulamos que a máxima efetividade do princípio do planejamento estratégico requer que o gestor não se contente apenas em planejar, por exemplo, uma rodovia, mas em buscar a maior integração possível com outras infraestruturas de transporte existentes ou que estejam sendo consideradas. Lembre-se de que cada ente federativo possui competência para promover a atividade de infraestrutura, muitas vezes de forma concorrente, como é o caso das infraestruturas de transporte, como rodovias, ferrovias e hidrovias.
Para ilustrar, imaginemos o caso de um município que planeje a provisão, operação e manutenção de uma rodovia para favorecer o deslocamento das pessoas que moram em um bairro afastado dentro de seu extenso território. Em paralelo, o Estado intende empreender uma rodovia de sua titularidade que, a despeito de ser motivada para conectar vários municípios circunvizinhos, coincidentemente propiciará uma via de deslocamento eficiente para as pessoas que residem no aludido bairro distante do município. Não há qualquer racionalidade que possa sustentar a realização simultânea da atividade de infraestrutura por ambas as entidades federativas, já que o interesse público a ser protegido acaba por ser coincidente.
A qualificação “estratégico” do princípio do planejamento exige a conformação de um verdadeiro e real cooperativismo federativo, de maneira que os beneficiários sejam plenamente atendidos, evitando o dispêndio desnecessário de recursos públicos. Essa colaboração recíproca entre os entes federativos é de natureza mandatória diante do princípio do planejamento estratégico, de maneira que possa otimizar a organização das tarefas públicas.
A imposição do planejamento estratégico demanda, outrossim, que, em processos concessórios, sejam realizados todos os estudos operacionais, financeiros e jurídicos que consubstanciam a decisão pela concessão da infraestrutura. Tais estudos devem ser estruturados dentro da fase de planejamento para que a execução dos contratos possa ser harmoniosa, com obtenção dos resultados perquiridos. Infelizmente, contudo, a Administração Pública planeja pouco e planeja mal e, por isso, está sujeita ao princípio em questão, que se não observado, resultará na invalidade irrefutável da decisão administrativa.
Há um ciclo de externalidades positivas quando tal comando é observado pelo administrador, com incidência dos respectivos efeitos jurídicos: melhor eficiência operacional da atividade; redução de dispêndios públicos pela antecipação discriminada de intervenções (parafraseando o brocardo “quem paga mal paga duas vezes”, a verdade é que “quem planeja mal, paga duas vezes”); distribuição adequada e racional de riscos contratuais; abordagem eficiente de questões que envolvem reequilíbrio econômico-financeiro; estipulação do correto modelo jurídico de delegação da atividade propiciando estabilidade jurídica nas relações decorrentes; dentre outras.
Infelizmente, pode-se observar, no Brasil, a necessidade da edição de uma pluralidade de normas jurídicas (tal como a Lei 13.448/17) prevendo remédios como a relicitação e a prorrogação antecipada, ambos frutos indesejados de um planejamento estratégico desastroso promovido pelo Estado brasileiro. É preciso levar o planejamento a sério no país. Esse é o caminho da virtuosidade: sem planejamento estratégico não há infraestrutura.
A edição de tais figuras anômalas no Direito brasileiro é o atestado de que muitos projetos não foram seriamente estudados e planejados. Não raro, os contratos deles decorrentes não foram adequadamente cumpridos, mas não poderiam ser extintos pela caducidade, dado que a culpa não foi dos parceiros privados. Daí que o princípio que se extrai do ordenamento jurídico tem o condão exatamente de impor ao administrador a realização de tarefa fundamental para que a vivacidade da infraestrutura possa operar-se, e com isso, concretizar-se o objetivo desenvolvimentista de maneira impoluta.
[1] DAL POZZO, Augusto Neves. “O dever de planejamento estatal e a efetividade na prestação do serviço público de saneamento básico”. In: BERCOVICI, Gilberto; VALIM, Rafael (Coords.). Elementos de direito da infraestrutura. São Paulo: Editora Contracorrente, 2015, p. 209 Idem, ibidem, p. 53.
[2] DAL POZZO, Augusto Neves. “O dever de planejamento estatal e a efetividade na prestação do serviço público de saneamento básico”. In: BERCOVICI, Gilberto; VALIM, Rafael (Coords.). Elementos de direito da infraestrutura. São Paulo: Editora Contracorrente, 2015, p. 209.
[3] DAL POZZO, Augusto Neves. “O dever de planejamento estatal e a efetividade na prestação do serviço público de saneamento básico”. In: BERCOVICI, Gilberto; VALIM, Rafael (Coords.). Elementos de direito da infraestrutura. São Paulo: Editora Contracorrente, 2015, pp. 209-210.