I. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A preocupação dos Estados com a regularização dos mercados cambiários pode ter sua origem fixada nos idos da década de 1990, quando assistiram ao boom do cenário globalizado das corporações e da revolução tecnológica, que, conjuntamente, trouxeram uma facilidade nunca antes vista de alocação de recursos em diferentes jurisdições, derivando em uma escalada mundial dos fenômenos da evasão/elisão fiscal, e, até mesmo fornecendo as condições ideais para o surgimento de uma "guerra fiscal" entre Estados que oferecem a melhor jurisdição fiscal (os paraísos fiscais ou regimes fiscais privilegiados).
Assim é que a reação dos demais Estados nasceu, justamente, por meio do combate aos paraísos fiscais, como se observa do Relatório da Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD) intitulado Harmful Tax Competitio: an Emerging Global Issue, elaborado a partir de 1996 a pedido de Ministros dos Países Membros para “develop measures to counter the distorting effects of harmful tax competition
on investment and financing decisions and the consequences for national tax bases, and report back in 1998” [1].
A contribuição da OECD foi decisiva para o aprimoramento das normas antielisão mundo afora (no Brasil, temos a Lei Complementar nº 104/01, que incluiu o § único ao art. 116 do CTN); notadamente com o apoio dos Estados Unidos da América a partir de 2001, a situação evoluiu para a celebração de acordos e convenções entre os Estados (inclusive paraísos fiscais), sob a forma de Double Tax Treaties or Conventions, Tax Information Exchange Agreements e Mutual Legal Assistance Treaties para neutralizar os efeitos da concorrência fiscal com os regimes privilegiados no direito tributário interno, e, agora mais recentemente, por meio da cooperação institucional entre os Estados através do intercâmbio de informações econômico-fiscais, como é o caso do Foreign Account Tax Compliance Act (FATCA), dos Estados Unidos da América, já assinado pelo Brasil e promulgado pelo Decreto nº 8.506/15.
Todavia, Frederico Silva Bastos alerta para o fato de que a intensificação dessas medidas de cooperação, desacompanhada da avaliação rigorosa dos limites para sua implementação em face das garantias fundamentais asseguradas em matéria de direito interno exsurge como um grande problema para os contribuintes em geral, evidenciando o potencial conflito entre a norma internacional e o direito local[2], como é o caso, por exemplo, da dicotomia entre a divulgação de informações econômico-fiscais no âmbito dos acordos internacionais e o sigilo fiscal no Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT).
II. DO REGIME ESPECIAL DE REGULARIZAÇÃO CAMBIAL E TRIBUTÁRIA INSTITUÍDO PELA LEI Nº 13.254/16
O RERCT teve o condão de possibilitar a regularização voluntária de recursos, bens ou direitos de origem lícita, não declarados ou declarados incorretamente, remetidos, mantidos no exterior ou repatriados por residentes ou domiciliados no País, gerando, ainda, diversas controvérsias no âmbito jurídico, seja pelas motivações que levaram a sua aprovação, seja pelos efeitos legais que decorrem de sua adesão.
Em síntese, o RERCT visa, justamente, à regularização de ativos de origem lícita mantidos no exterior, através da aplicação de alíquota única e outras benesses, somente permitida a adesão de pessoas físicas ou jurídicas residentes ou domiciliadas no Brasil em 31/12/2014 – incluindo-se os espólios cuja sucessão ainda esteja aberta – que tenham sido ou ainda sejam proprietários ou titulares de ativos, bens ou direitos em períodos anteriores à referida data, ainda que nela não possuam saldo de recursos ou título de propriedade de bens e direitos.
Ficam impedidos de aderir ao RERCT contribuintes que tiverem sido condenados em ação penal transitada em julgado cujo objeto seja: (a) qualquer dos crimes contra a ordem econômica; (b) crime de sonegação fiscal; (c) crime de sonegação de contribuição previdenciária; (d) crime de falsificação de documento público ou particular ou crime de uso de documento falso; (e) crime de ocultação de bens, direitos e valores; e (f) crimes relativos a operações de câmbio não autorizadas e evasão de divisas; todos consoante a legislação específica aplicável a cada espécie.
Não obstante, de fato, a Lei nº 13.254/16 concedeu a extinção da punibilidade aos infratores dos crimes acima descritos, uma vez realizada adesão ao RERCT, acompanhada do pagamento do tributo exigido, desde que não tenham sido ainda condenados, o que provocou inúmeros questionamentos em função do caráter “pedagógico” da medida – beneficiar os infratores em detrimento dos contribuintes que cumpriram com suas obrigações legais. Em contrapartida, a Lei nº 13.254/16 deixou claro que não poderão fruir dos benefícios relativos ao RERCT os detentores de cargos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas, nem o respectivo cônjuge e os parentes consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, na data de publicação da Lei em questão (a teor do seu art. 11).
Além da extinção da punibilidade daqueles crimes, a regularização dos bens e direitos, mediante pagamento dos tributos e demais consectários devidos, implicará remissão dos créditos decorrentes do descumprimento de obrigações tributárias e a redução de 100% das multas de mora, de ofício ou isoladas, de acréscimos moratórios e dos encargos legais diretamente relacionados a esses bens e direitos, porém limitada a fatos geradores ocorridos até 31/12/2014. A declaração ainda terá o condão de afastar eventual multa pela não entrega completa e tempestiva da Declaração de Capitais Brasileiros no Exterior, na forma definida pelo BACEN, bem como aquelas penalidades aplicadas pela CVM ou outras entidades regulatórias. Não obstante, a remissão e a redução das multas previstas não alcançam os tributos retidos por sujeito passivo, na condição de responsável, e não recolhidos aos cofres públicos no prazo legal.
A adesão ao RERCT importa confissão irrevogável e irretratável dos débitos tributários em nome do sujeito passivo, sendo aqueles ativos objeto de regularização tratados como acréscimo patrimonial adquirido em 31/12/2014, na forma prevista no inciso II do caput e do § 1º do art. 43 do CTN, ainda que nessa data não exista saldo ou título de propriedade, sujeitando-se a pessoa, física ou jurídica, ao pagamento do Imposto de Renda (IR), a título de ganho de capital, à alíquota de 15%, vigente em 31/12/2014, acompanhada de multa de 100% sobre o valor do imposto apurado, totalizando, assim, uma alíquota final de 30% sobre o valor dos bens em regularização, não sendo admitidas, quaisquer deduções ou descontos de custo de aquisição na apuração da base de cálculo do IR.
Ademais, os ativos expressos em moeda estrangeira deverão ter seu valor convertido em moeda nacional, consoante cotação do dólar fixada pelo BACEN para venda no último dia útil de dezembro de 2014, o que, considerando-se a atual cotação da moeda norte-americana, tornou-se extremamente vantajoso em termos de redução da base de cálculo em Reais, sobre a qual incidirá os 30% descritos anteriormente.
Por fim, será excluído do RERCT e não fruirá de seus benefícios legais aquele que apresentar declarações ou documentos falsos relativos à titularidade e à condição jurídica dos recursos, bens ou direitos declarados, hipótese em que serão cobrados os valores equivalentes aos tributos, multas e juros incidentes, deduzindo-se o que houver sido anteriormente pago, sem prejuízo da aplicação das penalidades cíveis, penais e administrativas cabíveis.
III. DA INSTRUÇÃO NORMATIVA RFB Nº 1.627/16
Visando regulamentar o RERCT, sobreveio a Instrução Normativa RFB nº 1.627/16, com objetivo de regular os procedimentos formais para adesão ao RERCT e fruição dos benefícios decorrentes: o contribuinte deverá apresentar à RFB e ao BACEN Declaração de Regularização Cambial e Tributária (Dercat), em formato eletrônico, contendo a descrição pormenorizada dos ativos de que seja titular em 31/12/2014, com seu respectivo valor em real, ou, no caso de inexistência de saldo ou título de propriedade na referida data, a descrição das condutas praticadas pelo declarante que se enquadrem nos crimes acima referenciados e dos respectivos bens e recursos que possuiu naquele interregno, juntamente com o comprovante de pagamento do IR devido.
Os ativos constantes da Dercat deverão também ser informados na Declaração de Ajuste Anual do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (DIRPF) e na Declaração de Informações Econômico-Fiscais da Pessoa Jurídica (DIPJ) 2015 retificadora (ano-calendário de 2014) e subsequentes, respectivamente para as pessoas físicas e jurídicas, bem como na escrituração contábil societária relativa ao ano-calendário da adesão e posteriores, neste último caso aplicável apenas às pessoas jurídicas, para atendimento também da Escrituração Contábil Fiscal (ECF) que veio a substituir aquela Declaração.
Em síntese, a regulamentação trazida pela IN RFB nº 1.627/16 reproduziu os benefícios originais da Lei nº 13.254/16 e estabeleceu, além dos procedimentos necessários para adesão ao RERCT, a data limite para apresentação da Dercat e pagamento do IR devido, fixada em 31/10/2016. Ademais, o RERCT se mostra bastante atrativo para regularização de ativos mantidos no exterior, não apenas pela alíquota única de 30% que incidirá, a título de IR e multa de ofício, sobre os valores a serem regularizados, mas também pela dispensa de internalização daqueles ativos, bastando que estes sejam devidamente declarados, conforme detalhado anteriormente.
Por outro lado, ainda que, na prática, as multas não tenham sido completamente anistiadas com o novo programa, os valores pagos com a adesão ao RERCT são significativamente inferiores àqueles devidos pelos contribuintes que, não optando pela regularização, vierem a ser autuados pela RFB, conforme exemplo a seguir, que detalha o custo fiscal da repatriação de ativos avaliados em US$2.000.000,00, adquiridos em jan/2011:
Custo de repatriação de ativos com RERCT
Total de Ativos em jan/2011 - US$ 2.000.000,00
Conversão em R$ (31/12/2014): R$ 2,65 - R$ 5.300.000,00
Conversão em R$ (16/03/2016): R$ 3,82 - R$ 7.640.000,00
Alíquota Nominal (IR + Multa) - 30%
Valor RERCT (R$) - R$ 1.590.000,00
Alíquota Efetiva (patrimônio em 16/03/2016) - 20,81%
Custo de repatriação de ativos sem RERCT
Total de Ativos em jan/2011 - US$ 2.000.000,00
Conversão em R$ (31/12/2014): R$2,65 - R$ 5.300.000,00
Conversão em R$ (16/03/2016): R$ 3,82 - R$ 7.640.000,00
IR - 27,5% R$ 2.101.000,00 Multa - 75% - R$ 1.575.750,00
Juros Selic – 52,27% (desde jan/2011) - R$ 1.921,837,22
Valor Autuação - R$ 5.598.587,22
Alíquota Efetiva (patrimônio em 16/03/2016) - 73,28%
Como se observa no exemplo hipotético acima, o contribuinte economizaria mais de R$ 4.000.000,00 com o RERCT, o que representa um custo final cerca de 70% menor para repatriação desses ativos, em comparação com o imposto e encargos legais que seriam devidos no caso de eventual autuação fiscal pela RFB.
IV. A PROBLEMÁTCA DO SIGILO FISCAL NO RERCT: ALGUMAS QUESTÕES
Como destacado, o RERCT se presta apenas à regularização dos ativos de origem lícita, dispensando-se, todavia, qualquer prova de licitude (quanto às suas origens e não aos crimes cuja punibilidade é extinta pela adesão do contribuinte), a qual é substituída pela mera declaração do contribuinte. Não obstante, o §13 do art. 4º da Lei nº 13.254/16 é assertivo ao afirmar que “sempre que o montante de ativos financeiros for superior a USD 100.000,00 [...] o declarante deverá solicitar e autorizar a instituição financeira no exterior a enviar informação sobre o saldo desses ativos em 31 de dezembro de 2014 para instituição financeira autorizada a funcionar no País, que prestará tal informação à RFB, não cabendo à instituição financeira autorizada a funcionar no País responsabilidade alguma quanto à averiguação das informações prestadas pela instituição financeira estrangeira”.
Em outras palavras, ainda que dispensada a prova de licitude, sempre que os ativos que se pretenda ver regularizados forem superior a US$ 100.000,00 far-se-á necessária a intervenção de uma instituição financeira nacional, que deverá buscar informações junto à instituição responsável pelos recursos no exterior, posteriormente repassadas à RFB. Assim, ainda que a legislação desobrigue as instituições financeiras de atestar a origem daqueles ativos, as próprias regras de compliance interno dessas instituições financeiras certamente deverão impor uma averiguação prévia das operações que lhes forem submetidas.
E, nessa esteira, não se pode olvidar do fato que, segundo o art. 11 da Lei nº 9.613/98, as instituições financeiras “dispensarão especial atenção às operações que, nos termos de instruções emanadas das autoridades competentes, possam constituir-se em sérios indícios dos crimes previstos nesta Lei, ou com eles relacionar-se”, obrigando-se a comunicá-las ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), assegurado o sigilo fiscal dos envolvidos.
E foi justamente nesse contexto que a Lei nº 13.254/16 estabeleceu em seu art. 7º que “a divulgação ou a publicidade das informações presentes no RERCT implicarão efeito equivalente à quebra do sigilo fiscal, sujeitando o responsável às penas previstas na Lei Complementar no 105/01, e no art. 325 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal)”, tendo consignado ainda em seu §2º que “é vedada à RFB, ao Conselho Monetário Nacional, ao BACEN e aos demais órgãos públicos intervenientes do RERCT a divulgação ou o compartilhamento das informações prestadas pelos declarantes que tiverem aderido ao RERCT com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, inclusive para fins de constituição de crédito tributário”.
Todavia, a despeito dessa ressalva expressa, a legislação do RERCT não tratou dos eventuais conflitos normativos relativos justamente à proteção do sigilo fiscal, como é o caso da dicotomia entre a obrigação das instituições financeiras de avalizarem a regularização de ativos financeiros superiores a US$ 100.000,00 e a necessidade de comunicação ao COAF no caso de indícios de ilicitude.
Outra situação de evidente conflito se dá em relação ao FATCA, por meio do qual informações bancárias serão automaticamente trocadas entre diversos países em função do Common Reporting Standard desenvolvido pela OECD (cuja implementação completa no Brasil está prevista até set/2018).
Em ambos os casos, a instituição do RERCT, a despeito de assegurar expressamente o sigilo fiscal dos contribuintes, não logrou estabelecer um mecanismo para resolução desses conflitos normativos – como fez em relação à vedação do compartilhamento de informação com as receitas estadual e municipal, para fins de constituição de crédito tributário -, situação que certamente irá acarretar uma série de conflitos no decorrer da implementação do programa, tanto do ponto de vista das instituições financeiras, que, quando envolvidas, deverão avaliar a eventual necessidade de comunicação ao COAF na hipótese de indícios de irregularidade face à possibilidade de eventual responsabilização por omissão, quanto dos órgãos regulatórios brasileiros – principalmente a RFB e o BACEN –, em função das recentes obrigações internacionais de compartilhamento de informações econômico-fiscais assumidas pelo Estado brasileiro.
Já sob a perspectiva do contribuinte, o aparente conflito de normas gera, sobretudo, maior insegurança para aqueles contribuintes que, nesse momento, avaliam a possibilidade de adesão ao RERCT, em função das dúvidas quanto a real extensão do sigilo fiscal, tanto nos procedimentos prévios conduzidos por instituição financeira (e a possibilidade de eventual alerta ao COAF), quanto no compartilhamento dessas informações com outros Estados soberanos; nesse último caso, não apenas em razão do risco de uma investigação externa, mas também porque a extinção da punibilidade prevista no RERCT somente alcança aqueles crimes praticados no Brasil, mas não aqueles eventualmente praticados no exterior, mormente face à plausibilidade da tipificação penal na jurisdição estrangeira desta mesma conduta cuja punibilidade estaria extinta no Brasil.
Nesse cenário, a solução desses conflitos em potencial certamente demandará a intervenção do Poder Judiciário ao longo do processo de implementação do RERCT, contexto em que não se pode ignorar o posicionamento a favor da constitucionalidade da quebra do sigilo bancário pelo Fisco, sem a necessidade de ordem judicial, em consonância com a Lei Complementar nº 105/01 - que trata do sigilo das operações de instituições financeiras -, conforme se observa do recente julgamento do RE nº 601.314/SP, em conjunto com as ADI nº 2859, 2390, 2386 e 2397 no STF[3], vez que um dos principais argumentos invocados para justificar constitucionalidade da medida foi justamente o fato de que a manutenção da exigência da ordem judicial poderia “inviabilizar a troca de informações, pelo Brasil, de acordo com o padrão internacional, já que essa pressupõe a possibilidade de obtenção de informações bancárias pelas autoridades fiscais do país” [4].
V. REFERÊNCIAS
[1] BASTOS, Frederico S. Transparência Fiscal Internacional e Administração Tributária em Rede: O Sistema Regulatório e Prático do Intercâmbio de Informações Tributárias no Brasil e es Direitos e Garantias Fundamentais Dos Contribuintes. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/11730/Frederico%
20Bastos%20%20Disserta%C3%A7%C3%A3o%20Mestrado%20%20v%2007
%2005%202014%20(Vers%C3%A3o%20Completa%20e%20Anexos%20Final). pdfsequence=1. Acesso em 25 mar. 2016.
[2]OECD, Harmful Tax Competition – An Emerging Global Issue. Paris, 1998. Disponível em: http://www.oecd.org/tax/transparency/44430243.pdf. Acesso em 24 mar. 2016.
[3]Supremo Tribunal Federal. STF garante ao Fisco acesso a dados bancários dos contribuintes sem necessidade de autorização judicial. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetal he.asp?idConteudo=310670. Acesso em 24 mar. 2016.
[4]OLIVEIRA, Phelippe Toledo Pires de. A troca de informações em matéria tributária: práticas e perspectivas brasileiras sobre o assunto. Disponível em: http://www.pgfn.fazenda.gov.br/revista-pgfn/ano-i-numero-iii2012/K%2019%20a%20troc a%20de%20informacoes.pdf. Acesso em 24 mar. 2016.