Título: Os desafios da universalização dos serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário

Autor: Percival José Bariani Junior

Recentemente, em um encontro com representantes de governos estaduais e municipais e de empresas privadas do setor de saneamento básico, o tema da universalização dos serviços de água e esgoto foi objeto de intenso debate e de grande preocupação de todos, considerando que as metas fixadas pela legislação para atendimento de 99% da população com água potável e 90% da população com coleta e tratamento de esgoto devem ser atingidas até 31 de dezembro de 2033.

Realmente, um horizonte de 10 anos para a universalização em todo o território nacional desses serviços, que exige um planejamento minucioso, a realização de investimentos vultosos e a obtenção de financiamento junto a instituições nacionais e internacionais, nos parece bastante desafiador e começa a colocar dúvidas sobre a efetiva capacidade dos titulares em atender às metas, que, há 3 anos atrás, ainda que arrojadas, pareciam factíveis.

Considerando a experiência adquirida ao longo de mais de 20 anos em projetos e em contratos envolvendo a prestação dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, compartilhamos de todas as aflições e preocupações e buscaremos apresentar aqui uma visão geral sobre o que entendemos como principais desafios a serem enfrentados e as possíveis alternativas para superá-los, sem, por óbvio, esgotar o tema, como forma de contribuir com o debate.

O Brasil é um país de dimensões continentais e com diferenças sociais e econômicas de mesma proporção. Em algumas regiões ou localidades, há carência de recursos básicos necessários à sobrevivência, como alimentação adequada e saúde pública, havendo milhões de pessoas que vivem com um salário-mínimo ou menos por mês. Outras milhares vivem em regiões afastadas dos grandes centros urbanos, em áreas rurais longínquas, com difícil acesso aos serviços imprescindíveis para a manutenção de um nível de vida adequado.

Essa é uma realidade que, ao mesmo tempo, se mostra um desafio à universalização dos serviços de abastecimento de água es esgotamento sanitário. Como incluir essa população que luta diariamente para colocar comida na mesa no âmbito da prestação desses serviços que exige, como forma de remuneração, o pagamento de uma tarifa? No mesmo sentido, como universalizar o serviço em uma área rural longínqua, onde é inviável, técnica e economicamente, a extensão da rede pública dos serviços?

Há um problema político e social que ainda não foi devida enfrentado. Somente com um planejamento adequado da prestação, prevendo a existência de tarifas sociais e até mesmo isenções, pode-se viabilizar o acesso dessa população aos serviços. E, em muitos casos, a concessão plena dos serviços, remunerada exclusivamente por tarifas, não será a opção mais adequada para equalizar essas necessidades às obrigações financeiras do futuro contratado. A injeção de recursos públicos pode ser imprescindível, seja subsidiando, seja remunerando parcela ou a integralidade da prestação dos serviços, como nos casos das parcerias público-privadas (PPP) nas modalidades concessão administrativa ou patrocinada.

A criação de bloco regionais também pode ser uma solução, desde que a criação deles não se paute apenas por questões políticas, mas busque dar um tratamento adequado para os municípios ou localidades com predominância de população rural ou de baixa renda, de forma que, em conjunto com outras localidades com maior apelo econômico a prestação dos serviços, possa se mostrar vantajosa e atraente ao particular.

No que concerne às áreas rurais, dificilmente nos deparamos com contratos de concessão ou de PPP já em execução em que a prestação dos serviços abrange essas regiões. Como regra, temos que o “serviço concedido” abrange apenas a área urbana. Nesse sentido, como universalizar os serviços sem oferecer aos moradores dessas localidades uma opção de captação e de lançamento de esgoto, mesmo que seja um apoio na implantação e manutenção de uma solução privada?

Ainda que em um contrato de concessão ou PPP, não se vislumbra óbices para que serviços complementares sejam prestados e cobrados dos usuários, com preço específico. Assim, serviços de perfuração de poço subterrâneo e manutenção periódica de uma fossa séptica, por exemplo, podem ser incluídos no escopo contratual com uma remuneração adequada, considerando sempre a capacidade financeira da população.

A questão do papel das empresas estatais e das autarquias na prestação dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário é também um desafio a ser enfrentado. Ainda que alguns Estados já tenham dado um direcionamento a essa questão, certo é que ainda carecemos de uma solução que atenda aos anseios de todos os envolvidos.

Necessário destacar que o Governo Federal contribui bastante para esse cenário de incerteza e de insegurança jurídica que temos visto desde o início do ano de 2023, com a edição dos dois malfadados decretos que deram prazo maior às empresas estatais para comprovar a capacidade de atender às metas de universalização e ainda permitiu a contratação delas sem licitação, em algumas hipóteses específicas.

Não se olvide que esses decretos também buscaram enfrentar um problema real vivenciado em muitos municípios e estados, que é a continuidade da prestação de serviços por empresa estatal ou autarquia sem contrato ou com contratos vencidos ou precários mesmo após a solução dada pelo legislador em 2020.

Por certo que não há solução fácil, que não envolva um risco político ou que possa ser replicada em todo o país, mas o enfrentamento desse tema é urgente, sob pena de se manter o status quo, que, como visto nos últimos 50 anos, não conseguiu atender às necessidades da prestação do serviço adequado.

Outro desafio que precisa ser superado é a deficiência na estruturação dos projetos. Apesar de o saneamento básico ser um setor com concessões já consolidadas, ainda nos deparamos com planos de saneamento mal elaborados e editais de licitação com exigências descabidas ou flagrantemente restritivas à competição.

Um plano de saneamento deficiente, com informações equivocadas ou desatualizadas, implica, certamente, em uma modelagem jurídico-financeira falha, o que reduz a competitividade ou enseja a celebração de um contrato incompleto, atrasando o cumprimento das obrigações. No mesmo sentido, ainda há muitos editais que trazem exigências descabidas, acarretando suspensões e anulações pelos órgãos de controle.

A utilização de Procedimento de Manifestação de Interesse ou a contratação de entidades públicas ou privadas, de reconhecida experiência no setor, para um apoio na indicação da modelagem mais adequada pode reduzir substancialmente os riscos de paralisações e os problemas de execução contratual.

Por fim, a ausência de normas gerais de regulação dos serviços, aplicáveis em todo o país, também contribui para o atraso no cumprimento das metas. A regulação do setor ainda é muito fragmentada, com normas editadas por entes municipais, estaduais e federais. Além disso, o que se vê é uma atividade regulatória mais preocupada em aplicar sanções e controlar os meios utilizados pelo contratado, como a necessária aprovação prévia de projetos e a realização de fiscalização por obras, do que acompanhar o cumprimento das metas e a qualidade do serviço prestado.

Por tudo isso, parece-nos inconteste a necessidade de se adotar medidas urgentes para (i) incrementar a qualidade do planejamento, prevendo formas de atendimento à população mais carente ou de zonas rurais, bem como produzindo melhores planos de saneamento e modelagens mais seguras; (ii) definir o papel das empresas estatais; e (iii) revisar o papel e atuação das agências reguladoras, trazendo maior eficiência ao serviço. Com o devido encaminhamento dessas questões, ainda podemos crer na viabilidade do cumprimento das metas de universalização.

Já há muitos modelos aplicados e projetos exitosos em andamento, de forma que a busca de soluções está, na maioria das vezes, dentro do próprio setor, bastando haver uma maior interação entre todos os envolvidos.